Caso Marielle – a semi-delação show

Imagem: Miriele Vidotti
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Por CARLOS TAUTZ*

A delação de Élcio de Queiroz e mais um show canalha da Globo

Quem acompanha há quase cinco anos e meio os simulacros de investigação sobre os assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes foi levado pelos espalhafatos da TV Globo a acreditar que a semi-delação show do motorista-cúmplice Élcio Queiroz teria sido um passo firme no sentido de responder às perguntas-esfinge que embaralham a solução do assassinato duplo: quem diabos mandou matar Marielle? E por que, caramba?

Estamos esperamos sentados que dos dois volumes da semi-delação que ainda estão a salvo de vazamentos sistemáticos à TV Globo tragam mais do que a simples relação de bagrinhos que operam no estado miliciano do Rio de Janeiro. Queremos e a democracia exige que os nomes dos mandantes arquitetos, dos financiadores e dos beneficiários venham finalmente à tona.

Claro que ajuda, e muito, saber que a campana sobre Marielle começara pelo menos seis meses antes do que se sabia e que envolvera no mínimo mais dois milicianos. Essas novidades comprovam que houve muito mais dinheiro e intencionalidade envolvidos no planejamento e execução do atentado, e que tudo isso não poderia ter sido concebido e executado sem uma conspiração de nível político muito mais alto do que seriam capazes os sicários-operários até aqui descobertos.

Só isso já deveria ter o condão de jogar por terra uma tese que, por mais mentirosa que se prove, ainda é repetida pelos arrogantes e nababescamente assalariados procuradores estaduais. Mas, não: um dos arrogantes teve a ousadia de não descartar a hipótese-idiotice de que Ronnie e seus capangas teriam feito o que fizeram movidos por ódio pessoal, e não a soldo de algo muito superior.

Ok, então todos nós fingimos que acreditaremos no conto de que a pior e mais bem paga quadrilha de matadores do estado miliciano do Rio de Janeiro passou meses se dedicando a campanar Marielle somente porque a ex-vereadora começava a pontificar para o grande público nas causas dos direitos humanos de moradores de favelas, da população gay e de mulheres negras. Não, nem a Carochinha faria melhor, procuradores. Contem outra.

Esse argumento estúpido e mau caráter casa perfeitamente com o ardil protagonizado por Élcio Queiroz – que aliás, como provam as muito bem enquadradas imagens vazadas como sempre com exclusividade para a rede Globo, mostrou-se muitíssimo à vontade no depoimento prestado aos engravatados marajás (que sequer, no vídeo vazado, investigaram a proximidade factual entre Ronnie Lessa e outra quadrilha, a dos Bolsonaro, que também residia no mesmo condomínio Vivendas da Barra).

Élcio Queiroz teve a cara de pau de atribuir a um morto, o ex-PM Macalé, a iniciativa de contratar Ronnie Lessa e sua quadrilha com a “missão” de assassinar Marielle. Bingo! Como o arquivo Macalé já foi mesmo queimado em 2021 e mortos ainda não têm o condão de falar a verdade, está fechada a quadratura do círculo que une um assassino profissional a procuradores que nos acham tolos para engolir essa mentira tosca.

Então, como esse jogo está sendo jogado dessa forma, sugere-se que todos se previnam e evitem que uma verdade seja construída por interesses comuns de sicários e engravatados.

O passo seguinte dessa operação pode acabar sendo a conclusão de que não houve mandantes arquitetos do crime político de maior repercussão no Brasil desde a bomba no Riocentro em 1981. Uma tese flagrantemente mentirosa, mas que, se aceita pela família de Marielle e Anderson, pela Justiça e pela sociedade, ao final manteria tudo na mais perfeita ordem em um Estado cujos poderes reais não estão no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Mas na milícia, no tráfico e nessa polícia, que se juntam e se misturam sob a ideologia complacente desse MPRJ.

A propósito de Macalé, Élcio Queiroz ainda contou outra mentira que os marajás do MPRJ optaram por deixar passar. Disse que até há poucos meses Macalé o pagava por mês R$5 mil (por que, marajás, vocês não perguntaram a razão desse assalariamento?). A quantia, segundo Élcio, teria minguado a R$1,5 mil e depois, chegado a zero.

Assim, Macalé, morto há dois anos, teria conseguido a proeza de pagar até recentemente algum tipo de arrego a Élcio Queiroz, na cadeia desde março de 2019. Mas, apesar dessa engenharia financeira de outro mundo, não ocorreu aos doutos e arrogantes engravatados investigar como e por quê um defunto consegue enviar mensalmente um Pix lá do quinto dos infernos a um criminoso encarcerado, que por estar atrás das grades supostamente não teria acesso às suas próprias contas bancárias.

São essas e muitas outras incoerências que, pelo menos até hoje, deixam no ar a dúvida: qual seria a verdadeira razão de o MPRJ ter proposto e o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, aceito uma delação cheia de furos e contendo apenas os nomes de mais partícipes dos assassinatos , e não dos mandantes e das razões do crime que, se solucionado, escancarará os estômagos do poder político e econômico que vem sendo gestado no Rio desde a famigerada ditadura empresarial e militar implantada em 1964?

Aliás, como se vê pela atuação da PF, os “novos” operadores do crime já poderiam ter sido descobertos há muito tempo pela Polícia Civil e o próprio MPRJ, com o simples cruzamento de chamadas telefônicas do assassino profissional Ronnie Lessa e de Élcio Queiroz. É elementar, mas não foi feito – ou não se sabe se de fato foi realizado e mantido sob o véu cúmplice das conveniências no estado das milícias do Rio de Janeiro.

 

Mais um show canalha da Globo

Mas, por pior que o quadro seja, ele se deteriora ainda mais quando se percebe a dinâmica de promoção das falas de Élcio Queiroz.

A prisão, em seguida, do sicário Maxwel (o Suel) foi transmitida ao vivo pelo indefectível Grupo Globo e seu onipresente helicóptero Globo Cop (sic) – exatamente como aconteceu, por exemplo, em 2016, quando da condução coercitiva de Lula pela mesma PF. Globo e PF querem nos fazer acreditar que toda a logística de disponibilização, tripulação e condução de um helicóptero já estivesse concluída às 6 da manhã e que a aeronave, por mero acaso, passasse por cima da residência de Suel justo no momento em que ele era preso pelos federais.

Como dizia um personagem de Jô Soares, querem nos fazer de palhaços, mas nós nos recusamos a ser palhaços. Nós nos recusamos a continuar a engolir a decana aliança, conhecida de toda a imprensa nacional, entre a PF e a tevê dos filhos de Roberto Marinho…

Os “vazamentos” (ou distribuição dirigida?) de imagens do interrogatório de Élcio Queiroz e o intrépido helicóptero da Globonews que transmitiu ao vivo a prisão do suspeito Maxwuel na segunda passada somente provam que a Globo (criada em 1965) e a PF (que a partir da Constituição ditatorial de 1967 adquiriu a forma atual) continuam a operar a velha aliança que sempre garantiu à empresa dos Marinho a exclusividade de imagens que ajudam a esta Polícia a criar e sustentar hipóteses.

Mesmo que as próximas semanas (meses? anos?) tragam alguma informação nova, já foi criado um clima social de que talvez, sabe como é, tenhamos chegado onde é possível chegar e que, assim, devemos deixar os mortos enterrados e crimes supostamente sem mandante(s), idem.

*Carlos Tautz é jornalista e doutorando em história na Universidade Federal Fluminense (UFF).


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